A espiritualidade é fundamental

ericles Ìjìlodò
5 min readApr 23, 2024

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Que a nossa espiritualidade e a nossa cultura foram fundamentais para que nós sobrevivêssemos em todo esse contexto de racismo, a gente já sabe. Quando olhamos para as diásporas, claramente encontramos as mais diversas manifestações culturais com o intuito de garantir que nosso povo não esquecerá de nossas origens, por mais que o tempo passe, por mais que o Atlântico imenso, como ele é, nos separe do nosso lar. Essa também é a função dos cultos Africanos em diáspora.

Repetidamente, afirmo: Cultos Africanos, colocando em nosso contexto de africanos no Brasil. Entender que o Candomblé, Umbanda, Capoeira, Samba, Maracatu, Jongo, Xangô, Batuque e várias e várias outras manifestações culturais pretas, são sim Africanas e não afro-brasileiras ou afro-caribenhas.

Isso me lembra uma vez onde escutei um sacerdote do culto de Orisa, de certa forma, agradecendo a escravidão porque sem ela não teríamos as culturas africanas pretas. Não vou me lembrar das palavras até porque isso já deve fazer uns 5 a 6 anos, mas foi mais ou menos assim:

'Sei que a escravidão foi triste, porém, temos que agradecer porque graças a ela nós cultuamos orixás.'

E se essa fala não soa como burrice para você, você deve se preocupar bastante. E para todos que estão envolvidos nas culturas pretas, sabe que esse discurso não é incomum.

O grande fato é que não é graças ao Brasil que temos o culto aos Orisá e outras manifestações, e sim apesar do Brasil. Vamos montar uma situação hipotética aqui: Uma pessoa em um acidente perde a perna. Com o passar dos anos, a mesma se adapta a fazer seu trabalho e a cuidar da casa com apenas uma perna e de certa forma faz até bem porque teve que se adaptar. Vocês realmente acreditam que essa pessoa deve agradecer o acidente por ter perdido a perna?

O acidente ou a tragédia deverá ser exaltado ou será que são as pessoas que mantiveram e fizeram apesar da tragédia?

Sem falar que o termo Afro-brasileiro é só mais um modo de falar que a cultura do preto é de todos e no fim a gente sabe quem sai perdendo.

Isso também demonstra que o processo de segurança dentro dos nossos sistemas espirituais é fundamental para que não caia em mãos erradas. Por mais que muitas vezes isso seja feito de forma pensada, muitas vezes o branco vai ser introduzido dentro da nossa cultura por um falso benefício individual ou coletivo. E para isso é fundamental lembrarmos de todas as invasões que sofremos pelos brancos, que sempre chegam querendo aprender e querendo ajudar e depois...

Isso chega a ser muito engraçado porque os povos africanos são os que mais dão valor para história, contam e recontam inúmeras e inúmeras vezes, tal o próprio exemplo do povo Yoruba com os itan que tem como objetivo aprender e não cometer os mesmos erros que foram cometidos. Apesar dos personagens serem outros, a história nunca muda. Um itan que foi contado a 1500 anos pode ser contado hoje que facilmente entenderemos a lição do que fazer e do que não fazer.

E como ainda não aprendemos que a integração do branco nas nossas culturas só será prejudicial ao nosso próprio povo? Será que isso é só burrice ou isso é nosso próprio mal caráter?

Muitas vezes queremos nos abrigar e alimentar o outro sem pensar na segurança dos nossos. Como posso distribuir minha cultura com o branco sendo que nem mesmo distribuir com minha família?

E por essas e muitas outras que temos como base a revolução do Haiti, que com o primeiro princípio foi a própria espiritualidade para unificar os africanos contra os brancos. Importante observar que para que a maioria das revoluções acontecesse, tiveram que alimentar todos aqueles que estavam dispostos a lutar pela emancipação, alimentaram do mundo físico e do mundo espiritual. E tudo que remete à emancipação do povo preto estará falando da nossa unidade enquanto povo africano.

E entender que zelar e proteger nossos cultos, ou seja, não colocar na mão de brancos ou de pretos que estão afetivamente ligados com o sistema branco, é fundamental para a autonomia do povo preto.

Se não, não poderemos falar do vodu, Orisa e Nkises como forma de proteção e de guerra contra o branco. Porque será a mesma coisa de termos uma arma em guerra, porém não cuidar de quem pode ou não pode ter acesso a ela. E na hora do vamos ver, ou a arma já estará sendo utilizada pelo inimigo, ou ele já teve tanto acesso à arma que desenvolveu um escudo. E novamente na guerra racial, o que mais temos de poderoso, que é a nossa espiritualidade (cultura), poderá e será usada contra nós.

E não à toa, quando voltamos no dia 14 de agosto de 1791 no Haiti, onde se realizava no meio do pântano o ritual de Bwa Kayman, onde o intuito era de propiciarem os voduns e organizar a revolução, foi fundamental a proteção daquele local, que incrivelmente estava repleto de crocodilos. Eles só passaram por eles e chegaram no interior da mata, pretos acima de tudo, pretos que realmente estavam alinhados com a emancipação dos africanos do Haiti.

Todo o contexto do ritual foi importante sem dúvida, mas aqui gostaria de chamar a atenção para os crocodilos que fizeram a proteção daquele local. E sinceramente, por mais que os brancos passassem, os crocodilos, que obviamente era impossível, atrás dos crocodilos tinham homens e mulheres com coragem o suficiente para impedir o inimigo adentrando no seu culto por qualquer meio necessário.

Esse caráter de guardião da nossa cultura é o que cada vez mais vem faltando na gente, cada vez mais abrindo a porteira. E isso também vai estar diretamente relacionado às diversas transformações que o racismo vai tendo durante o tempo, fazendo assim acreditar que o mesmo já nem existe mais.

Quando falamos de sermos os próprios guardiões das nossas culturas e das nossas manifestações culturais, é para sermos guardiões da nossa espiritualidade e de nossos ancestrais. É realmente ver quem é digno ou não do axé. Estudar a nossa história e entender que nós não começamos a partir do colonizador, e sim apesar dele. E lembrar e contar feitos como esse da revolução Haitiana.

É fundamental para a manutenção da nossa espiritualidade, já que estamos lembrando daqueles que fizeram de tudo e mais um pouco para alcançar a liberdade do povo africano. Quando falamos para nossos ancestrais não abraçarem a árvore do esquecimento, na verdade, esse papel de manter a memória sobre eles é nosso. E toda vez que contamos e recontamos os feitos, isso cada vez mais nos impede de fracassar ou de ao menos tentar.

“Um pai ancestral que possui filhos e devotos não dorme e não esquece sua casa no Céu. Meu pai, jamais abrace a árvore do esquecimento (não se esqueça de seus devotos).”

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